Opinión - Bloomberg

Apple estabeleceu uma relação intrincada com a China. Agora será difícil desfazê-la

Parceria estratégica com fornecedores como a taiwanesa Hon Hai, liderada por Terry Gou, foi fundamental para a expansão global dos produtos da empresa, como o iPhone, mas dificulta para a empresa se desvincular da China

Foxconn
Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — Durante o primeiro mandato de Donald Trump, o presidente visitou uma fábrica no Texas e reivindicou o mérito de ter trazido a produção da Apple (AAPL) de volta para os Estados Unidos.

Só que a fábrica já estava em funcionamento muito antes de ele assumir o cargo. E foi um “fiasco total”. Trabalhadores da China tiveram que ser trazidos de avião para ajudar a resolver os crescentes problemas de fabricação encontrados no coração dos Estados Unidos.

Esta anedota reveladora do livro Apple in China: The Capture of the World’s Greatest Company (“Apple na China: A conquista da maior empresa do mundo”, em português), uma leitura cativante do ex-jornalista do Financial Times Patrick McGee, mostra como a big tech ficou em dívida com o maior adversário geopolítico dos Estados Unidos.

Até este ponto, o livro relata como a Apple levou engenheiros da Califórnia para a China para treinar e colaborar com os trabalhadores locais na fabricação de seus produtos mais icônicos.

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Agora, parece que a situação se inverteu irreversivelmente.

McGee argumenta que a transferência de tecnologia facilitada pela Apple para a China, por meio de pequenas decisões que se acumularam ao longo de décadas, acabou tornando-a a maior investidora corporativa no Made in China 2025, o ousado plano do presidente Xi Jinping para acabar com a dependência da tecnologia ocidental.

“A big tech mais famosa dos Estados Unidos estava se oferecendo para desempenhar o papel de Prometeu, entregando aos chineses o dom do fogo”, escreve McGee.

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No entanto, o argumento geral do livro — de que a empresa americana transformou a China no gigante tecnológico que é hoje – levanta a questão de por que a Apple não fez o mesmo tipo de investimento nos Estados Unidos.

E em meio ao segundo mandato de Trump, quando ele ameaçou repetidamente aplicar tarifas sobre a empresa se ela não transferisse a fabricação para o país, essa questão ganhou nova urgência.

Mas a realidade é que a insistência de Trump nunca será capaz de recriar o ecossistema que os governos locais na China, com a ajuda de fornecedores taiwaneses como a Hon Hai Precision Industry, criaram para atrair a Apple.

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Uma resposta simplista de um acadêmico no início do livro é que a China era um país com “baixos salários, baixo bem-estar social e baixos direitos humanos”.

Os fornecedores podiam explorar uma enorme classe baixa de trabalhadores migrantes, e as autoridades locais podiam suprimir rapidamente qualquer agitação trabalhista ou reportagens da mídia sobre isso.

Se havia alguma voz que eu gostaria de ouvir mais no livro, não eram as dezenas de engenheiros de Cupertino, na Califórnia, mas sim as desses trabalhadores chineses que transformaram a Apple na empresa de US$ 3 trilhões que é hoje.

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A Apple negou publicamente as alegações do livro e afirmou que são falsas e cheias de imprecisões.

Mas se há uma lição para Trump – ou para os consumidores americanos –, é que os empregos na fabricação de eletrônicos podem ter um custo alto para os trabalhadores. É difícil imaginar que esses sejam os tipos de cargos que a base eleitoral de Trump espera, em uma área onde a automação seria bem-vinda.

A China não é mais uma base de fabricação de baixos salários. O CEO da Apple, Tim Cook, reconheceu isso anteriormente, quando disse que sua empresa produz no país não por causa dos custos de mão de obra, mas por causa de sua legião de trabalhadores qualificados.

McGee argumenta que essa qualificação agora é usada para alimentar a inovação em big techs locais, como a Huawei Technologies – e é um resultado direto dos investimentos da Apple. Enquanto a empresa buscava lucros de curto prazo, fornecedores experientes na Ásia estavam jogando a longo prazo.

Leia mais: Apple vai ‘pular’ do iOS 18 ao iOS 26 em reformulação dos sistemas operacionais

Muitos de nós já ouvimos falar da lendária parceria entre o fundador Steve Jobs e o designer Jony Ive, que tornou o iPhone um produto único. Mas a parceria que o tornou revolucionário, com mais de um bilhão de proprietários, foi entre Cook e o “Tio Terry”, argumenta McGee. Terry Gou, fundador da Hon Hai (mais conhecida como Foxconn), foi o gênio da fabricação hiper-eficiente que levou o iPhone às massas.

Gou era descrito como obcecado por cortar custos — mesmo que isso significasse diluir o sabonete líquido nas fábricas com água.

Uma fonte do livro o descreveu como alguém que valia bilhões em “moedas de cinco e dez centavos”. Mas Gou reconheceu que o valor de trabalhar com a Apple não era apenas o lucro: era o conhecimento tácito que ele e sua equipe receberiam dos engenheiros enviados da Califórnia para ajudar a montar e operar as fábricas.

Esse aprendizado era inestimável, Gou entendeu, e fez com que mesmo perder dinheiro para conseguir os pedidos da Apple valesse a pena.

No fim das contas, o ecossistema de manufatura de alta tecnologia construído na China levou décadas, marcado não apenas pelas fábricas que produzem seus produtos icônicos, mas também pela criação de subfornecedores nas proximidades e um exército de engenheiros qualificados.

Será quase impossível para Trump tentar recriar isso durante seu mandato de quatro anos. Os Estados Unidos poderiam começar com a concentração de investimentos em educação profissionalizante e engenharia, mas os formuladores de políticas devem reconhecer que recuperar o atraso agora requer um jogo estratégico de longo prazo.

E todos os anos que levou para desenvolver uma dependência da China significam que não são tarifas de Trump que representam a maior ameaça existencial para a Apple. É Pequim.

Desvincular-se muito rapidamente da China pode irritar as autoridades locais, mas se essa separação não for feita em uma velocidade adequada, ficará ainda mais difícil realizá-la. E ela terá que acontecer inevitavelmente.

Como o livro de Patrick McGee argumenta de forma convincente, a Apple pode avançar lentamente em direção à Índia e ao Vietnã, mas não pode deixar a China tão cedo.

Esta coluna reflete as opiniões pessoais do autor e não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Catherine Thorbecke é colunista da Bloomberg Opinion e cobre tecnologia na Ásia. Já foi repórter de tecnologia na CNN e na ABC News.

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